Aula 10: As fontes da Revelação

10.1. O que é a Revelação?

Um ponto teológico muito relevante para você, caro seminarista e futuro clérigo, é entender o que é a Revelação Divina, quais as fontes dessa Revelação e quem é o intérprete da Revelação. Isso garante que não saíamos por aí falando qualquer besteira, fruto das vozes das nossas cabeças, sobre Deus, sobre a Igreja ou qualquer assunto parecido. Membros de uma Igreja, aderimos a fé dessa Igreja e nos submetemos ao que ela nos propõe. Isto não quer dizer que não haverão pontos mais difíceis de compreender, mas, quer dizer, que iremos pregar o que afirma a Igreja.

A Revelação Divina é o ato pelo qual Deus se comunica e se revela aos seres humanos. É o processo pelo qual Deus faz conhecida a sua vontade, seus ensinamentos e seu plano salvífico para a humanidade. De acordo com a Constituição Dogmática Dei Verbum, promulgada pelo Concílio Vaticano II em 1965, a Revelação Divina é um dom gratuito de Deus aos homens, por meio do qual Ele se faz presente e se comunica com sua criação.

A Dei Verbum enfatiza que essa revelação é progressiva e culmina na pessoa de Jesus Cristo. Através das Sagradas Escrituras (a Bíblia) e da Tradição Apostólica, a Revelação Divina é transmitida de geração em geração, permitindo que os cristãos conheçam Deus, sua vontade e o caminho para a salvação. Ou seja, Jesus Cristo é o Revelador e nele culmina toda a Revelação. Nada de novo há de ser Revelado e tudo que havia para ser Revelado já o foi em Jesus Cristo.

Jesus Cristo é o ápice da Revelação Divina, pois Ele é o Filho de Deus encarnado que veio ao mundo para revelar plenamente o Pai e Seu amor redentor. Através de Jesus, Deus se tornou acessível de uma maneira única, e a mensagem da salvação foi trazida de forma definitiva para a humanidade. É por isso que quando um papa vai proclamar um dogma, ou alguma coisa vai ser reformulada na doutrina da Igreja, tudo isso depende da ligação com a Sagrada Escritura e com a Tradição Apostólica. Existem dois aspectos principais da Revelação Divina, de acordo com a teologia:

Revelação Geral: É o conhecimento de Deus que pode ser alcançado através da observação da natureza, da razão e da consciência moral. Através da criação, Deus deixa pistas sobre Sua existência e Sua ordem. Essa revelação geral é acessível a todas as pessoas, independentemente de sua fé religiosa.

Revelação Específica: É a revelação particular de Deus registrada nas Escrituras (a Bíblia) e transmitida pela Tradição Apostólica, que é a transmissão oral dos ensinamentos apostólicos ao longo dos séculos. A Revelação Específica é a fonte principal e mais completa da revelação divina, pois contém as verdades reveladas por Deus sobre Si mesmo, Sua vontade e Seu plano de salvação para a humanidade.

10.2. Deus escondido e Revelado

Mesmo se Revelando, Deus continua sendo mistério. Ele é o "absconditus et revelatus", expressão em latim que significa o "escondido e revelado". Essa afirmação reconhece que, apesar de Deus ter se revelado à humanidade por meio de sua ação na história, na criação, nas Escrituras e, de maneira suprema, em Jesus Cristo, Sua essência divina permanece insondável e além da compreensão plena da mente humana.

A ideia de Deus como o "absconditus et revelatus" destaca a dimensão transcendente de Deus, que está além das limitações do conhecimento humano. Embora Deus tenha se revelado para que os seres humanos possam conhecê-lo e ter um relacionamento com Ele, essa revelação não esgota completamente o mistério divino. A Revelação Divina é um convite para nos aproximarmos de Deus e conhecermos Sua vontade, mas também nos lembra que a plenitude de Deus permanece além de nossa compreensão finita.

Essa noção de mistério também ressalta a importância da fé na vida do cristão. A fé é o reconhecimento daquilo que ultrapassa nossa capacidade de compreensão e nossa experiência sensível. Assim, a Revelação Divina não anula a importância da fé, mas, pelo contrário, a fundamenta e a torna possível. Assim, Deus é tanto acessível através de Sua revelação quanto misterioso em Sua essência, convidando-nos a buscar um relacionamento íntimo com Ele, mesmo reconhecendo a limitação do nosso conhecimento e a grandiosidade do mistério divino. Essa tensão entre a revelação e o mistério convida-nos a buscarmos uma vida de fé e adoração diante do Deus que se revela, mas cuja grandeza transcende toda compreensão humana.

10.3. A Sagrada Escritura

A Sagrada Escritura é uma das fontes fundamentais da Revelação Divina, contendo os escritos inspirados por Deus e que compõem a Bíblia. A Sagrada Escritura é composta por dois principais conjuntos de livros: o Antigo Testamento e o Novo Testamento. O Antigo Testamento é formado pelos escritos sagrados da tradição judaica, que foram aceitos e transmitidos pela Igreja como parte integrante da Revelação Divina. O Novo Testamento é constituído pelos evangelhos, as cartas apostólicas e o Apocalipse, que narram a vida, os ensinamentos, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, bem como a missão e as epístolas dos Apóstolos.

De acordo com a Dei Verbum, a Sagrada Escritura é considerada a Palavra de Deus transmitida através da linguagem humana. Esses textos sagrados foram escritos por autores humanos inspirados pelo Espírito Santo, de modo que, ao mesmo tempo em que refletem a cultura, a história e a personalidade desses escritores, também expressam a mensagem divina e a vontade salvífica de Deus para a humanidade.

O desenvolvimento da Sagrada Escritura ao longo dos séculos foi um processo complexo, marcado por eventos significativos que moldaram a composição do cânon bíblico que conhecemos hoje. Entre esses eventos, destacam-se a reforma do Rei Josias, a Bíblia dos LXX, o Concílio de Jâmnia, a tradução de São Jerônimo e o fechamento do Cânon Bíblico no Concílio de Trento.

No século VII a.C., a reforma religiosa liderada pelo Rei Josias no reino de Judá resultou na redescoberta do "Livro da Lei" no templo de Jerusalém. Esse evento foi um marco na preservação da tradição escrita do povo de Israel e trouxe um sentido de unidade ao cânon hebraico, que posteriormente se tornaria o Antigo Testamento. Essa reforma deu origem a uma ênfase na importância dos escritos sagrados e na centralidade da Lei (Torá) para a identidade do povo judeu.

Posteriormente, no período helenístico, os judeus que viviam na Diáspora grega sentiram a necessidade de traduzir os escritos hebraicos para o grego, língua franca da época. A Bíblia dos LXX, uma tradução grega do Antigo Testamento, foi produzida e amplamente utilizada por judeus da Diáspora e também por cristãos primitivos. Essa versão incluía alguns livros adicionais que não foram encontrados no cânon hebraico, os quais mais tarde seriam denominados "deuterocanônicos" pela tradição católica.

No final do século I d.C., ocorreu o Concílio de Jâmnia, uma assembleia rabínica judaica, que se reuniu para tratar de questões religiosas e legais após a destruição do Segundo Templo. Embora os detalhes desse concílio sejam incertos, acredita-se que ele tenha influenciado a definição do cânon hebraico, resultando na exclusão de alguns livros, especialmente aqueles que eram usados pelos cristãos e estavam escritos em grego. Essa recusa baseava-se em critérios específicos, como a ausência de certos livros na tradição escrita hebraica anterior e a preferência por textos que mantivessem uma origem e autoria judaica mais clara. Excluir os livros escritos em grego, ainda, servia para desvalorizar os escritos cristãos, como as Cartas e os Evangelhos, que eram escritos em grego.

Durante o século IV, São Jerônimo, um estudioso e teólogo cristão, realizou uma tradução latina da Bíblia, conhecida como Vulgata. Essa tradução tornou-se a versão oficial da Igreja Latina e contribuiu para a unificação do cânon do Antigo Testamento ao incluir os livros deuterocanônicos que haviam sido rejeitados pelos judeus.

Finalmente, no século XVI, durante o Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja oficialmente definiu o Cânon Bíblico, reconhecendo como inspirados todos os livros que a tradição já tinha aceitado desde os primeiros séculos. Esse concílio ratificou a inclusão dos livros deuterocanônicos no cânon da Bíblia católica, reafirmando a tradição apostólica e o desenvolvimento histórico da Sagrada Escritura.

A leitura e o estudo da Sagrada Escritura ocupam um lugar central na nossa espiritualidade, uma vez que são fonte de alimento espiritual, orientação moral e crescimento na fé. Através da meditação e reflexão sobre os ensinamentos divinos contidos nas Escrituras, somos convidados a aprofundar seu relacionamento com Deus, compreender Sua vontade e viver de acordo com os valores do Evangelho.

A exegese bíblica é uma disciplina hermenêutica que se dedica ao estudo e interpretação cuidadosa da Sagrada Escritura. Seu objetivo é compreender o significado original dos textos bíblicos, levando em consideração o contexto histórico, cultural, literário e teológico em que foram escritos. A exegese busca desvendar a mensagem divina contida nas Escrituras, discernindo a vontade de Deus e aplicando-a à vida e à fé dos fiéis. Por meio da exegese, os estudiosos e teólogos buscam uma compreensão profunda dos ensinamentos e das verdades reveladas por Deus na Bíblia, garantindo uma interpretação autêntica e fiel que fortaleça a vida espiritual e moral dos fiéis. A exegese é uma ferramenta valiosa para a pregação, o ensino e o aprofundamento da fé na Igreja, enriquecendo a compreensão da Palavra de Deus e sua relevância para os desafios contemporâneos.

10.4. A Tradição Apostólica

Além da Revelação na Escritura, há a Revelação na Tradição. A Tradição Apostólica, assume um papel de suma importância na preservação e transmissão da fé cristã. Essa tradição tem sua origem apostólica, remontando diretamente aos Apóstolos de Jesus Cristo, que foram testemunhas oculares de Seus ensinamentos e receberam a missão de difundir o Evangelho ao mundo. Essa ligação direta com os Apóstolos confere à Tradição uma autenticidade e confiabilidade inquestionáveis, sendo considerada como uma fonte primordial da Revelação Divina.

A transmissão oral é uma característica distintiva da Tradição Apostólica. Nos primórdios do Cristianismo, antes que os Evangelhos e outras escrituras fossem registrados, a fé e os ensinamentos de Jesus foram transmitidos de forma oral pelas comunidades cristãs e pelos sucessores dos Apóstolos. Essa tradição oral desempenhou um papel crucial na preservação da mensagem de Cristo e na formação da identidade da Igreja primitiva. Através do testemunho e da pregação dos primeiros cristãos, os ensinamentos de Jesus e os eventos de Sua vida foram transmitidos de geração em geração, tornando-se uma fonte valiosa de conhecimento e inspiração espiritual.

Outro aspecto relevante da Tradição Apostólica é o seu desenvolvimento progressivo. Ao longo dos séculos, a Igreja enfrentou desafios culturais, filosóficos e teológicos que demandaram uma reflexão contínua sobre a fé. Essa reflexão levou ao aprofundamento da compreensão dos mistérios da fé cristã e à sua adaptação aos diversos contextos históricos. A Tradição Apostólica, embora enraizada nas origens apostólicas, continuou a se desenvolver e se expandir, permanecendo viva e relevante para a vida da Igreja ao longo dos tempos.


Um ponto essencial é a relação intrínseca entre a Tradição Apostólica e as Sagradas Escrituras. Ambas são consideradas fontes da Revelação Divina e se complementam harmoniosamente. A Igreja afirma que a Tradição e as Escrituras são inseparáveis, e juntas constituem o depósito da fé transmitido por Deus à humanidade. A interpretação correta das Escrituras é guiada pela Tradição Apostólica, e, por sua vez, a Tradição é iluminada e sustentada pelas Escrituras. Essa relação estreita entre ambas as fontes fortalece a solidez da doutrina e da vida de fé na comunidade cristã.

A Tradição, porém, não pode ser confundida com a tradição (uma é com T maísculo e outra com t minúsculo). A Tradição, oral ou escrita, são os comentários e as colocações dos padres apostólicos (os teólogos dos primeiros séculos) sobre os temas da teologia, inspirados pelo Espírito Santo, assim como foram os autores dos textos bíblicos. A tradição, por sua vez, são costumes e estes podem ser mudados.

10.5. O magistério: autêntico intérprete da Revelação

Mas, para interpretar a Escritura e a Tradição é necessário um intérprete: o magistério. O magistério é autoridade e o ensinamento oficial da Igreja Católica, exercida pelos bispos em comunhão com o Papa. O magistério é entendido como um guia para a compreensão e interpretação autêntica da Revelação Divina, conforme transmitida nas Escrituras e na Tradição Apostólica.


A Constituição Dogmática Dei Verbum, aborda o papel do magistério no contexto da interpretação das verdades reveladas. De acordo com a Dei Verbum, o magistério é reconhecido como um dom de Deus para a Igreja, uma vez que é investido com a autoridade para preservar, ensinar e explicar corretamente o depósito da fé transmitido por Deus através da Revelação. O magistério, como intérprete da Revelação, possui três funções principais:

Conservação do depósito da fé: O magistério tem a responsabilidade de preservar fielmente os ensinamentos revelados transmitidos nas Sagradas Escrituras e na Tradição Apostólica. Essa função de conservação é essencial para garantir a continuidade e a autenticidade da mensagem divina ao longo do tempo.

Interpretação autêntica: O magistério exerce a autoridade de interpretar corretamente a Revelação Divina, buscando aprofundar o entendimento dos fiéis em relação à vontade de Deus, aos mistérios da fé e à moral cristã. A interpretação autêntica visa evitar distorções e interpretações equivocadas que possam surgir ao longo da história.

Ensino infalível: Em questões de fé e moral, o magistério pode proclamar ensinamentos infalíveis quando, através do Papa ou do conjunto dos bispos em comunhão com ele, define um dogma ou doutrina que deve ser crido pelos fiéis como verdade revelada por Deus. Esse ensino infalível é conhecido como "Magistério Extraordinário" e é considerado protegido pela assistência do Espírito Santo para garantir sua veracidade e coerência com a Revelação Divina.

Em suma, o magistério serve para interpretar a Revelação Divina contida nas Sagradas Escrituras e na Tradição Apostólica. Ele desempenha um papel fundamental na preservação da autenticidade da fé cristã e no ensino da doutrina transmitida por Jesus Cristo aos Apóstolos, garantindo assim a continuidade da fé através dos séculos. Através do magistério, os fiéis, leigos, religiosos e clérigos, são orientados a compreender, assimilar e viver os ensinamentos divinos com fidelidade e coerência. Assim, quem quiser fazer parte da Igreja Católica, deve seguir o que ensina o magistério sobre a Sagrada Escritura e a Tradição.